Poética do Eu (Sumário)

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A concepção narrativa da identidade pessoal constitui a matriz de inúmeros programas de investigação em Filosofia, Estudos Literários e Ciências Sociais. Porém, depois do aparente consenso sobre o valor da hipótese do Eu Narrativo, baseado nas obras de A. MacIntyre, P. Ricoeur e Ch. Taylor, emerge uma consciência crítica geral da vulnerabilidade desse cogito hermenêutico que este Projeto visa aprofundar. Na filosofia analítica, retomam-se e generalizam-se os puzzling-cases, heuristicamente frutuosos desde J. Locke até D. Parfit e G. Strawson, para se denunciar o idealismo da unidade e identidade das memórias autobiográficas, dada a sua essência fragmentária ou episódica. A gramática dos verbos psicológicos revela ainda, numa análise neo-wittgensteiniana, a contingência das configurações narrativas e a vacuidade introspetiva do Eu. Na filosofia continental, enfatiza-se a resistência do fundo fenomenológico antenarrativo, o silêncio do mundo da vida, do corpo próprio pático e da espontaneidade aleatória dos acontecimentos brutos com a sua temporalidade catastrófica e, portanto, semanticamente descontínua (de Husserl a M. Henry e de Merleau-Pontya S. Gallagher, L. Tengelyi e C. Romano). Na literatura, desequilibra-se a estabilidade narrativa do eu e proliferam formas imaginativas de transgressão do género e da voz narrativa (seja no romance, na poesia ou nos seus híbridos), expandindo os universos abissais e fractais de Proust, Joyce, Pessoa, Borges, Musil ou Kaffka que submetem a forma narrativa ao amorfismo da matéria/energia vivida. Nas Ciências Sociais, evidencia-se o caráter proteiforme das múltiplas relações entre a vida e a narração, sob o signo contraditório da unificação e da fragmentação, da busca de sentido e da fruição (trágica ou irónica) de absurdo. Portanto, o animal contador de estórias com a sua tripla mimesis e o jogo dialético entre idem e ipse que, para Ricoeur, seria capaz de auto-permanência pela palavra e pela ação, parece ignorar que vida precede e transcende a narração, que a inteligibilidade narrativa exige uma redução.

O problema essencial deste Projeto questiona como a narração impõe, na sua morfogénese retórica de um eu coerente, uma ordenação e mutilação da experiência. Assim, propõe-se um retorno da Hermenêutica do Eu à fenomenologia da sensação, memória, imaginação e experiência simbólica, interrogando:

  1. Qual a geometria temporal ou processual do acontecer e qual o seu impacto formador sobre a consciência? Como o aleatório, o descontínuo, o multilinear e multidirecional são matéria de experiência e de expressão biográfica? Como o pathos e o trauma, psíquico ou histórico, (de)formam o tempo e a narrativa?
  2. Qual a relação entre a sensorialidade vivida, a génese do sistema mnésico autobiográfico e a expressão narrativa? Qual o grau de poïesis e de mimesis na biografia? Como se articula a tríade diltheyana da Vida-Expressão-Compreensão?
  3. Qual a relação entre memória, imaginação e linguagem na redação biográfica? Será a memória essencialmente um subsistema da imaginação e da vontade de sentido? E será a imaginação a faceta subjetiva do imaginário metanarrativo da comunidade semiótica (por ex., sistemas mítico-teológicos)?
  4. Qual a intencionalidade que funda uma história/estória de vida? Quem a escreve, quem a narra, quem a protagoniza? Qual a relação entre vida, arte e verdade? Há uma verdade ético-estética no Eu? O que será verdade narrativa, histórica, hermenêutica e performativa?
  5. Qual o alcance ético-político do Eu Narrativo? Pode definir-se a personalidade moral pela competência narrativa? Pode situar-se a responsabilidade na narratabilidade? Pode traduzir-se a luta pelo reconhecimento em conflito psicossocial internarrativo e julgar-se amoral e apolítico o que permanecer inenarrável?

Metodologicamente, a análise integrada da construção do Eu Biográfico deverá converter-se num espaço transdisciplinar trabalhado por uma rede internacional e interdisciplinar de Filosofia, Estudos Literários e Ciências Sociais com cerca de 30 investigadores (além de colaboradores e estudantes). Partindo de um questionamento comum e de um mesmo corpus filosófico de referência, os investigadores – na maioria com relações científicas anteriores ao presente Projeto – explorarão, com múltiplas perspetivas, os limites e as virtualidades do paradigma narrativo da subjetividade, dinamizando seminários de investigação em várias instituições em comunicação permanente (CFUL, Ehess, UFRJ, ULaval, UCLouvain, UParis3, UParis4). Estes serão devidamente coordenados e integrados através da definição de tarefas conjuntas que exigirão análise cruzada de relatórios e draft-papers, individuais e grupais, num processo de co-escrita e rescrita coletiva, culminando em publicações conjuntas e organização de colóquios plenários. A Filosofia oferecerá os instrumentos analítico-críticos e formulará as hipóteses teóricas que serão testadas nos laboratórios empíricos da Literatura e das Ciências Sociais.

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